Devaneios Antropológicos
O fazer etnográfico: o sufocar da realidade ou a tradução dos mundos? Devaneios sobre casas e lares no interior de Pernambuco
Alexandre Gomes Teixeira Vieira
(Doutorando PPGA/UFPE)
"Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas". (LISPECTOR, 1984).
Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva. (LISPECTOR, 1984).
O fazer etnográfico [...] Jacques Gutwirth (2001), como outros, muitos outros, trouxe à tona a questão: "etnologia, ciência ou literatura?". Ora, todo exercício de escrita não seria, pois, sensu lato, literatura? Ou estaríamos arbitrariamente separando, taxidermizando e, com isso, sufocando nossa visão sobre a realidade? "Ahh, a realidade!" - há realidade na dimensão do escrever? Até que ponto? Marilyn Strathern (2014) argumentou sobre as "ficções persuasivas" no fazer antropológico dos clássicos em nossa disciplina, porém não foi a única. Geertz (2013), em vários textos de sua coletânea "o saber local", também deixou espaços para que pensássemos nosso fazer como um tipo de "ficção controlada", e essas afirmações não tiram em nada a nossa legitimidade de "traduzir os mundos", salvo os casos em que "sufocamos" o outro nas palavras, que forçosamente nos propiciam lembrar do que "nunca existiu", para parafrasear Clarice.
Para, mais uma vez, parafrasear Clarice, a lembrança, o exercício de lembrar é como "carne viva"; na verdade o lembrar é como um parto. Mas, como eu poderia falar sobre isso? Não tenho essa capacidade! Para, mais uma vez, parafrasear Clarice, não poderia falar do que "nunca vivi, contudo eu me lembro, e a lembrança é carne viva". Lembrar é um exercício, ou seja, requer esforço. Por que é um ato de trabalho? Ou um ato tenebroso? "Assim, como se me lembrasse", ponho-me a escrever sobre o outro.
De todo modo, penso não como "Um fazer etnográfico", mas como "O fazer etnográfico". As proposições etnográficas são como uma "fundação[1]", um alicerce! Pensando etnograficamente: seriam como o alicerce das antigas casas de taipa, e mesmo as de alvenaria com paredes de tijolo dobrado, construídas no final do século XIX e início do século XX, porém não mais atualmente? Seriam? E por quê? No Agreste de Pernambuco essas edificações, que, em alguns casos, ainda abrigam famílias, persistem ao tempo, ainda são um lar, por vezes ameaçadas, no caso do meu estudo por outras edificações, nem de taipa, nem de tijolo dobrado, mas por "torres que convertem o vento em energia" - "interessante!": dizem alguns interlocutores.
As casas de alvenaria de tijolo dobrado eram construídas sob a rocha matriz, ou com uma "fundação" profunda feita da mesma rocha matriz, que era cortada em blocos e estes encaixados com perfeição e rejuntados com argamassa, feita de barro e água. Os tijolos eram feitos de barro de formigueiro e queimados com madeira de Imburana[2], que resistem ao tempo, possibilitando reformas e ampliações que carecem, evidentemente, de algum cuidado, mas que não comprometem a estrutura daquilo que está posto. Tal e qual é a teoria por trás do fazer etnográfico?
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As casas de taipa, por outro lado, com suas paredes de madeira e barro, amarradas com cordas feitas de fibra de Croá[3] e Ouricuri[4], não tiveram tanto sucesso, sucumbindo ao tempo. Mas, apesar de serem edificações menos resistentes e com maiores imperfeições que as de alvenaria, guardam importantes aspectos da vida, da história e das condições materiais. Digo: econômicas e, da mesma forma que as casas de alvenaria, possuem alicerces firmes que, diferentemente de suas paredes, conseguiram envelhecer bem, mostrando que, mesmo que as paredes construídas a partir deles caíam, as bases permanecem firmes.
Estaria, pois, o fazer etnográfico, o exercício de lembrar e o ato de escrever para a ciência, como as bases das edificações mencionadas para a história? Além disso, o que se vê através de alicerces seculares é também o que resta de uma escrita etnográfica? Se a resposta for sim, existe um problema, ou não. O alicerce em si, como uma leitura crua da realidade em uma observação participante não nos diz muito; o alicerce por si não nos diz nada, mas, com o mínimo exercício de lembrar "aquilo que nunca vivemos", é possível ouvir o samba de coco sendo tocado, guiado pelas palmas e pisadas no massapê[5], batendo o piso da construção. Nos restos de tijolos quebrados reside a memória dos homens, que com banguês[6] carregaram a areia trabalhada pelas formigas até a olaria[7] e lá moldaram do barro sua criação, tal e qual Deus em seu ato simbólico de concepção da humanidade. Fazendo eco a isso estão as palavras de Jean Giono, ao dizer que sim, o homem é tão grandioso quanto Deus em funções que não sejam destruir, ou seja: criar.
O calor da madeira de Imburana e Candieiro[8] queimando na caieira, comprimindo o barro nos tijolos, para construção; as mulheres cozinhando e cantando, para alimentar os que trabalham na edificação e celebrando o lar; crianças brincando, ou participando da labuta? É isso o que está escrito nas entrelinhas de um torrão de uma casa. É isso que podemos ler e tirar de lá. Espantosamente, nenhuma dessas linhas de "tradução" - ou traição - estavam lá, nas ruinas da velha casa, não em verbo ao menos. Seria essa percepção as "entrelinhas", então? Não sei esse exercício de lembrar sem nunca ter vivido, falar sobre algo sem ter sentido, narrar sem ter ouvido, nem deve, nem é devido.
Em um último movimento, uma síntese: vislumbrar ao longe as grandes torres eólicas é fácil, óbvio; é inquestionável que elas ferem a paisagem do Agreste de Pernambuco. Mas observar que elas sobrepõem casas de taipa, de alvenaria, lares em geral, com um estrito critério social, econômico, racial e cosmológico exige, realmente, lembrar não do que nunca se viveu, mas do que querem que seja esquecido.
Referências
GEERTZ, C. O saber local: novos ensaios sobre antropologia interpretativa. Petrópolis, Vozes, 2013.
GIONO, Jean. O homem que plantava árvores - Tradução de Alice Sarabando. On line. Disponível em: https://www.novainter.net/arq/OHomemQuePlantavaArvores.pdf acesso em 13 de jul. de 2021.
GUTWIRTH, Jacques. A etnologia, ciência ou literatura? Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 7, n. 16, p. 223-239, dezembro de 2001.
STRATHERN, Marilyn. Fora de contexto: As ficções persuasivas da Antropologia. In:O Efeito etnográfico. São Paulo: Cosacnaify, 2014.
[1] Termo utilizado nas áreas rurais do Agreste pernambucano para se referir aos alicerces das casas, mais especificamente a profundidade que esses alicerces tem e como foram construídos.
[2] A Imburana-de-Cambão (Commiphora leptophloeos) é uma espécie de arvore típica das Caatingas no Nordeste brasileiro, utilizada na medicina popular, bem como na construção de artefatos de trabalho, artesanato e durante muito tempo foi usada no cozimento de peças de barro, entre elas tijolos e telhas para antigas casas.
[3] O Croá/Crauá/Crauatá/Caruá (Neoglaziovia Variegata) é uma espécie de bromélia endêmica da Caatinga, essa planta é utilizada na produção de cordas a partir de suas fibras, sendo utilizadas na construção de peças rituais entre populações indígenas no Nordeste do Brasil, mas também em peças de trabalho pela população camponesa em geral, essas cordas e fibras estavam entre os materiais utilizados na "amarração" da madeira das casas de taipa.
[4] Syagrus coronata é uma espécie de palmeira/coqueiro que ocorre no Nordeste brasileiro.
[5] O termo se refere ao barro argiloso em qualquer situação; um lamaçal, o piso pré-acabado de casas de taipa ou pau-a-pique, terreiros entre outros lugares.
[6] Se pronuncia Bangu-ê, é um suporte mais ou menos plano feito de couro, saco, restos de carroças ou outro material que sirva para carregar barro ou esterco, tendo dois caibros de madeira amarrados um de cada lado para que seja carregado por duas pessoas uma na frente e outra atrás.
[7] Lugar onde são moldados os tijolos.
[8] Eremanthus glomerulatus - árvore que tem sua madeira amplamente utilizada para queima, atualmente ainda é utilizada por padarias e fabricas para assar pães e bolachas.
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Alexandre Teixeira é professor e pesquisador. Atualmente Doutorando em Antropologia pelo PPGA/UFPE e bolsista FACEPE. É mestre em Culturas Africanas da Diáspora e dos Povos Indígenas (PROCADI-UPE, 2019) e graduado em História (UPE, 2016). Estudante na especialização em Linguagens e Práticas Sociais (IFPE). Foi professor na rede municipal de educação de Caetés-PE de 2013 a 2018. Diretor geral e coordenador do grupo de pesquisa Vale do São José (Caetés-PE). Também é membro do DEVIR - Grupo de Pesquisa em Religião, Contemporaneidade, Morte e Imagens vinculado ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da UFPE.