Ontem foi 19 de Abril e como nos disse Mirian Krexu “a mãe do Brasil é indígena”

20/04/2021

Por: Alexandre Gomes Teixeira Vieira

"A mãe do Brasil é indígena, ainda que o país tenha mais orgulho de seu pai europeu que o trata como um filho bastardo. Sua raiz vem daqui, do povo ancestral que veste uma história, que escreve na pele sua cultura, suas preces e suas lutas". Mirian Krexu (2020).

Esse texto foi publicado na integra originalmente no página do projeto Página Viva no blog Caetés News em julho de 2020 com o título "como nos disse Mirian Krexu ' Amãe do Brasil é indigena'". Retomar esse texto agora com um um dia de atraso do "dia do índio" foi oportuno, afinal todos os dias são dias para se discutir sobre cultura, história, luta e resistência indígena e suas várias nuances ao longo da história do Brasil. No texto trago, além das questões postas pela Mirian Krexu, algumas de minhas próprias inquietações presentes inclusive em minha dissertação de mestrado, caso fiquem curiosidades acerca dos temas tratados recomendo assistir as duas partes da live disponíveis no Instagram do projeto Página Viva (https://www.instagram.com/projeto_pagina_viva/) lá foram discutidos pormenores acerca desse texto. Pois bem, boa leitura aos interessados.

"Pega a dente de cachorro"?

"Pega a dente de cachorro", essa expressão é relativamente conhecida e difundida aqui no Agreste de Pernambuco, em todos os lugares que estive, e não foram poucos, enquanto professor ou pesquisador, sempre havia alguém que vinha falar comigo depois da palestra confirmando essa expressão, e uma ou outra coisa que tinha falado, pera, mas do que se trata essa expressão "a dente de cachorro?

"Pega a dente de cachorro" é na verdade uma parte de narrativa que sempre vem dentro da seguinte frase: "minha avó ou bisavó foi pega a dente de cachorro", é um tipo de memória que remonta quase sempre ao final do século XIX ou início do XX. Trata da violência vivida por mulheres "cabocas" que viveram nessa região e foram forçadas a constituir casamento com patriarcas em geral "brancos" por aqui; a "mulher caboca" que aparece nessas narrativas pode e deve ser entendida como "mulher indígena". 

Fotografia tirada em Serra Negra durante o Aricuri do povo Kambiwá no Sertão de Pernambuco

Imagem: Alexandre Gomes Teixeira Vieira

Brasil afora...

Em outras regiões do Brasil existem expressões como "pega no laço" ou "no casco do cavalo", todas referindo-se a essas mulheres indígenas pegas no mato e forçadas a se casar com o colonizador branco. Essas narrativas e memórias apesar de socializadas como se tivessem ocorrido em um passado muito distante remetem na verdade a quatro, talvez três gerações antes da sua, supondo que o leitor desse texto tenha entre 20 e 30 anos, se você for mais jovem que isso, podemos acrescentar mais um ou duas gerações, mas não mais que isso. Em outras palavras estamos falando de nossas avós, bisavós, talvez das mães delas; mulheres indígenas violentadas e forçadas pelo projeto de colonização a casar-se com o branco. 

Ok, e aí?

Diversos autores como os antropólogos João Pacheco de Oliveira e Eduardo Viveiro de Castro, ou o historiador Eduardo França Paiva, ainda que discordem entre si sobre vários pontos em suas produções, evidenciaram que existe um silencio gigantesco na história do Brasil no que diz respeito a história dessas pessoas, esses "descendentes" de indígenas, ainda que o termo "descendente" não seja o mais adequado é o que temos por agora. O autor e ativista indígena Ailton Krenak em outro momento afirmou que é preciso inserir uma grande parte da população que tem se identificado como "parda" e "branca" no debata sobre as lutas dos povos indígenas, afinal muitas dessas pessoas são netas e netos dessas mulheres "pegas a dente de cachorro".

Se pensarmos o norte e nordeste, estamos falando das regiões com a maior população de pardos e indígenas quando somadas, além disso pensando na provocação de Ailton Krenak quantos brancos não seriam também "indígenas"? Ao longo da história do Brasil a mestiçagem promoveu um ambiente complicado cheio de nuances muito delicadas, ao longo dos últimos 500 anos dessa história os vários povos indígenas foram também nomeados de diferentes maneiras: negro da terra, caboclo, cabra, pardo, e talvez o mais genérico de todos índio.

Relevância da memória

As memórias distribuídas pelo vasto território do Agreste pernambucano são diversas, as vezes confusas, por vezes incompletas, mas ainda assim, nos possibilitam pensar outros cenários que fogem dos discursos clássicos sobre os povos aldeados ou dizimados. Algumas narrativas que tive o privilégio de coletar apresentam pessoas, que apesar de em sua maioria terem vivido a margem da sociedade ou em situações de vulnerabilidade, e violência social, buscaram se inserir na sociedade se "misturando" a outros grupos. Essas outras vivências dessas pessoas descritas como "cabocos" ou "cabocos brabos" que viveram em outras lógicas sociais, fora dos aldeamentos, fugidas, isoladas em fundos de vales, em furnas e "lócas", constituindo outras imagens como o vaqueiro, o tocador, o curador, o rezador, isso para mencionar apenas as principais imagens socializadas nas memórias ouvidas; o intuito desses "cabocos" possivelmente foi o fugir da violência vivida esse povo construiu uma outra história, dentre tantas outras. 

É preciso desfolclorizar!

Além de todo esse percurso brevemente apresentado, é importante destacar a grande variedade de histórias contadas e recontadas que estão relacionadas a imagens desses "cabocos" e "cabocas". Histórias essas que mais uma vez renomearam essa diversidade de pessoas, generalizando e transformando em figura imaginária. Peço licença para explicar um pouco melhor com um trecho que analisei em minha dissertação no mestrado: 

Muito oportuno para um caçador dizer que apanhou de um ser sobrenatural da mata ao invés de assumir ter levado uma surra de "índios" e principalmente de "índias", causando comoção na sociedade e gerando uma imagem de fragilidade deste. A invenção discursiva da "caboquinha" serve para não ferir a invenção do "cabra macho" no Nordeste brasileiro. Dito isso, podemos propor que o imaginário se torna dessa maneira produto do social, real e existe para entre outras coisas, resguardar certas memórias, sua historicidade e resolver dilemas sociais aflorando assim nas narrativas.

O discurso antes da análise

A "caboquinha" foi uma das imagens que "folclorizaram" o indígena, também derivada da figura feminina entre os vários povos. Mas qual a história por trás dessa personagem? Várias pessoas descrevem a "caboquinha" de forma genérica como sendo uma espécie de "entidade feminina" que habita na Caatinga protegendo a fauna ou auxiliando caçadores em troca de oferendas, em geral cachaça e fumo, ou atrapalhando a caçada na ausência dessas oferendas; as "caboquinhas" ainda são referenciadas como o espirito dos "cabocos" que habita a mata. Como narrou Vanildo Ferreira em uma conversa:

- Existia índio por aqui, ou aquele que chamavam "caboco brabo"?

- Tinha aqui o "caboco brabo", hoje resta só os espirito deles que são as caboquiha que mandam na mata

(Entrevista com Vanildo Ferreira, no Sítio Varzea dos Bois, Caetés/PE, 30/08/2019)

Se tem algo que podemos retirar da interpretação da imagem das caboquinhas é que possivelmente a mulher indígena foi transformada em "folclore" em história para contar para assustar crianças. Na prática foi transformada em "folclore" nessas narrativas, para não fragilizar a imagem patriarcal do estuprador branco que dentre várias outras atrocidades violentou mulheres indígenas que, no entanto, resistiam.

Tá e daí?

Talvez esse texto tenha deixado mais coisas em aberto do que dado respostas, mas algumas coisas podemos considerar de tudo isso: primeiro você que se acha "branco", "pardo", "preto", "misturado", talvez tenha mais de indígena em sua história do que você imagina, ou mesmo saiba. Segundo as histórias do "folclore" precisam ser melhor interpretadas, precisamos saber que por trás dessas "fantasias" há mais verdade do que nos contaram, muitas delas foram criadas com a intensão de ocultar verdade e violências e fingir que determinadas histórias não existiram. Terceiro precisamos nos inserir mais nos debates sobre os povos indígenas, afinal fazemos parte deles saibamos ou não, afinal o Brasil foi algo que aconteceu na história de todos os nossos antepassados, seja lá quem tenham sido. Quarto ainda há muito para saber da nossa história, durante muito tempo as pessoas que escreveram a história faziam com um olhar "branco", urbano e colonial, e essa é só uma forma de ver a história, forma essa que não levou em consideração o que acontecia nos interiores do Brasil e que não foi escrita e guardada em arquivos em textos escritos, mas vive na memória das pessoas e é verbalizada, na fala.

Uma coisa nisso tudo é certa, se em sua família existe uma memória de uma mulher que foi "pega a dente de cachorro", "no laço" ou "no casco do cavalo", possivelmente quem a capturou foi um estuprador, é forte receber essa informação assim, mas foi assim, a questão é sabendo disso o que você vai fazer a respeito?

Se você leu esse texto até aqui, muito obrigado, a história é muito comprida e uma conversa acaba levando a outra, peço desculpas se me alonguei de mais, se tiver alguma dúvida sobre o texto estou à disposição, deve ter aqui algum lugar para perguntar então pergunte. Mais uma vez obrigado. E não esqueça "a mãe do Brasil é indígena"!

Alexandre Gomes Teixeira Vieira 

É indígena

É bolsista FACEPE e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, possui mestrado em Culturas Africanas da Diáspora e dos Povos Indígenas (Antropologia) e graduação em História pela Universidade de Pernambuco - Campus Garanhuns.

Foi professor na rede municipal de educação de Caetés-PE de 2013 a 2018.

contato: alexandre.teixeira@ufpe.br

Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/0398017641181076

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